STJ tranca ação penal por ausência de provas contra administradora acusada somente com base em seu cargo

     A decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso em Habeas Corpus (RHC) n. 168.779/PE aborda um aspecto fundamental do processo penal: a necessidade de um nexo causal claro entre a conduta do réu e o crime imputado para justificar o prosseguimento de uma ação penal. Nesse caso, a ré, que ocupava o cargo de administradora em uma empresa envolvida em fraude à licitação, foi denunciada apenas por sua posição hierárquica na empresa, sem uma exposição precisa de sua participação individual nos atos criminosos.

      O tribunal destacou que, para a configuração de justa causa para a ação penal, é essencial haver indícios claros de autoria e materialidade, de forma a evitar a responsabilidade penal objetiva — isto é, a imputação de crimes a um indivíduo apenas por sua função ou posição, sem que se comprove a contribuição efetiva para a prática delitiva. Essa prática é repudiada, pois a responsabilidade penal objetiva vai de encontro aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

        Na análise do caso concreto, a Sexta Turma observou que a denúncia apresentava a conduta da recorrente apenas com base no fato de ela constar como administradora da empresa beneficiada pela fraude. Ademais, o documento que formalizou o ato fraudulento foi assinado por outro representante legal, que sequer foi denunciado. Essa inconsistência reforçou a ausência de nexo causal entre as ações específicas da recorrente e os crimes a ela imputados. A decisão também enfatizou a falta de demonstração de um ajuste prévio entre a recorrente e os demais acusados, o que é imprescindível para configurar o crime de associação criminosa.

         Por fim, a decisão acolhe o recurso da defesa, concedendo o trancamento da ação penal, e aponta que a manutenção da denúncia sem a comprovação de justa causa constitui um constrangimento ilegal. Esse entendimento reafirma o compromisso do STJ com a interpretação restritiva das acusações penais e a vedação de responsabilizações penais baseadas unicamente em relações funcionais, o que preserva o devido processo legal e os direitos fundamentais dos acusados. 

      Portanto, a decisão da Sexta Turma no RHC n. 168.779/PE enfatiza a importância de provas concretas que vinculem a conduta específica do acusado ao delito, visando evitar injustiças e assegurar que as denúncias apresentadas em processos penais respeitem os princípios da legalidade e da responsabilidade subjetiva.

PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E FRAUDE À LICITAÇÃO. ATRIBUIÇÃO DOS CRIMES À RECORRENTE, TENDO EM CONTA A POSIÇÃO DELA NA EMPRESA FAVORECIDA PELA FRAUDE DO CERTAME LICITATÓRIO (ADMINISTRADORA). EXISTÊNCIA DE DOCUMENTO ASSINADO POR OUTRO REPRESENTANTE LEGAL, QUE SEQUER CONSTA COMO ACUSADO. DEMONSTRAÇÃO DO AJUSTE PRÉVIO DA RECORRENTE COM OS CORRÉUS. AUSÊNCIA. HIPÓTESE DE RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. IMPEDIMENTOS AO EXERCÍCIO DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. TRANCAMENTO EM RELAÇÃO À ACUSADA QUE SE IMPÕE. 1. É cediço, neste Superior Tribunal, o entendimento de que somente é cabível o trancamento da ação penal por meio da via eleita quando houver comprovação, de plano, da ausência de justa causa, seja em razão da atipicidade da conduta supostamente praticada pelo acusado, seja pela ausência de indícios de autoria e da materialidade delitiva, ou ainda pela incidência de causa de extinção da punibilidade. 2. No caso, ao se cotejar os tipos penais imputados com a conduta atribuída à recorrente na inicial acusatória, é possível perceber que falta a narrativa do indispensável nexo causal, tendo as condutas sido atribuídas apenas pelo fato de a acusada constar como administradora da empresa que figura como favorecida pelo certame licitatório fraudado. Consta da inicial do recurso, inclusive, o print de documentos que demonstram ter sido o certame fraudado firmado por um representante legal da empresa, o qual sequer consta como acusado na exordial. 3. De uma leitura bem atenta da denúncia também desponta a ausência de demonstração do ajuste prévio da recorrente com os demais acusados, circunstância que impede o exercício do contraditório e da ampla defesa, inclusive, em relação ao crime de associação criminosa. 4. Tais constatações demonstram a atribuição da repudiada responsabilidade penal objetiva e impedimento ao exercício do contraditório e ampla defesa. Precedentes. 5. Recurso provido para trancar a Ação Penal n. 0001015-27.2021.8.19.0078, em trâmite na 1ª Vara da comarca de Búzios/RJ, em relação à recorrente. (RHC n. 165.803/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 11/10/2022, DJe de 14/10/2022.)

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